Brasils I São Paulo
Não é possível pensar uma cidade sem considerar sua dimensão social. Pois, atrás de seus “remparts” de ontem, nas suas torres de hoje, nos bairros centrais, nas suas periferias, nos cantinhos/interstícios que tecem as vias de comunicação, são sociedades que se estabelecem, convivem mais ou menos bem, brigam às vezes, procuram as regras e modos de vida aceitáveis e é nas cidades, mais do que em nenhum outro lugar, que os processos de marginalização e de exclusão florescem.
A sociedade urbana é também a onde a gangrena das diferenças sociais fica mais visível, e de um certo modo mais radical. Ao mundo da dominação feudal se sucedeu, nas cidades cada vez mais gigantes que atraem os pobres na procura de uma hipotética salvação, um modo de dominação selvagem, brutal e extremo. E na medida de cada etapa especulativa, os centros históricos ficam cada vez mais caros para a classe média, se esvaziam da sua substância vital e viram guetões. A cidade é, para o sociólogo, um terreno de observações propício e significativo da evolução da sociedade inteira, de suas fortes tendências. E, para o fotógrafo que tem como objetivo explorar e tentar esclarecer o mundo contemporâneo, um campo de experiência único.
É nesse contexto que convém enfocar a pesquisa fotográfica conduzida durante mais de um ano em São Paulo pelo fotógrafo francês Ludovic Carême, que adotou essa cidade para viver.
Ele focalizou seu olhar numa “favela” pequena, Água Branca e, com uma abordagem radicalmente inscrita na pura tradição estética do documentário, convida-nos simplesmente a olhar. “Favelas”- que a gente recusa frequentemente de ver como tudo que numa sociedade incomoda, porque isso choca as boas consciências e se revela doloroso - fala-se muito e se vê pouco, finalmente. A sobremediatização faz com que nos mostrem as favelas só nos momentos de extrema violência- que existem obviamente, mas que não são exclusivamente o cotidiano- e que esquecemos que se trata em primeiro lugar, de um desafio/problema humano, simplesmente. Se as favelas são zonas de ausência de direitos, cada vez mais percebidas como uma ferida das cidades, são também lugar de vida de seres humanos que são nossos contemporâneos. Na França a mesma coisa acontece quando as televisões nacionais se preocupam unicamente das periferias quando os carros queimam, quando tem confrontos violentos entres os jovens e a polícia ou quando tem mortes pelas armas, detidas pelos dois lados.
Água Branca nao é uma favela espetacular e não tem nada a ver com a beleza venenosa das construções dos morros cariocas. Água Branca é simplesmente um amontoado caótico de construções de madeira acima de um esgoto a céu aberto –-uma violência a mais - na qual tentam sobreviver centenas de pessoas. Famílias pobres e marginalizadas. Muitos jovens e crianças, muita humanidade também, tanto como muitos dramas cotidianos e desespero contínuo.
Ludovic Carême, soube - isso graças à mediação de Brito (obrigado Brito, meu amigo !) - entrar na comunidade, ganhar a confiança dela e trabalhar com humildade.
Nenhuma anedota, testemunhos inúteis para mostrar a fragilidade das construções e a destruição brutal delas durante a expulsão - às vezes com realojamento – dos habitantes. E, sobretudo, retratos. Dois tipos de retratos que dizem a necessidade do fotógrafo de tomar distância e, como dizia o diretor Jean Luc Godard, se for “só uma imagem” pelo menos tenta ser “uma imagem justa”. Por isso, a postura “física”do fotógrafo, o ponto de vista real dele são fundamentais, tanto como a atenção dada à luz.
Então o dispositivo, pois é disso que se trata, se divide em dois momentos: uma fase de retratos íntimos, mas que não são nem tentativas psicológicas nem sonhos estéticos, nem ensaios para tirar expressões que poderiam ser mal interpretadas para quem vai olhar. Só uma maneira simples e carinhosa, sem efeitos, mas suave, de mostrar uma juventude que seriamente pode se questionar sobre os anos ainda que tem para viver e qual futuro se podem inventar.
A outra série de retratos, em pés, também simples, sem efeitos, constitui, um inventário dos habitantes da favela posando na frente do muro que beiram, cedo de manhã, para pegar o ônibus que os levara no trabalho. A oportunidade também – e não se trata de negar a realidade do tráfico - que a grande maioria dos adultos e dos jovens trabalham, e trabalham duro. A gente percebe neles, já no momento da saída, a resignação e o cansaço. A maneira frontal da aproximação, a repetição do quadro cujas variações são ínfimas, inscreve o trabalho na linha documentarista, cujo Walker Evans, e, aqui, August Sander são as referências históricas.
Mas a fotografia tem seus limites e é nada mais do que uma imagem que, inclusive quando procura ser a mais fiel possível assumindo sua subjetividade, não conseguiria dizer tudo. Por isso o fotógrafo pediu aos habitantes para testemunhar através de palavras que acompanham os retratos. Quando não sabiam escrever, as crianças se esforçaram com as escrituras delas, tanto precisas como imperfeitas, para contar uma história e expressar sentimentos. Sangrados, dolorosos, intensos. E muitas vezes atravessados de sonhos que gostaríamos de imaginar possíveis.
Cada vez que estive na Água Branca, para além da tristeza que me invadiu ao ouvir as narrativas dos desastres quotidianos, ficou na minha memória a visão de um paradoxo permanente : apenas a uns metros da favela, um supermercado luxuoso vende materiais de construção, cerâmicas, janelas, portas e tudo que se precisa para construir, melhorar e enfeitar uma casa confortável…
É simples, evidente, mas é bom lembrar de novo: uma favela, antes de tudo, são pessoas. Nossos contemporâneos.
Christian Caujolle